Há um perigo sutil e devastador que ronda os corredores do ministério cristão, tenha você um cargo eclesiástico ou seja você um “simples colaborador” nas atividades da igreja. Ele se veste de zelo, se mascara de competência, se alimenta de elogios e se esconde em justificativas piedosas. É a glória própria — o desejo do coração caído de ser visto, celebrado e reverenciado. No capítulo intitulado “Glória Própria” do livro Vocação Perigosa, Paul Tripp desmonta esse ídolo com precisão cirúrgica, mostrando como ele pode transformar pastores em reis autodeclarados e líderes em homens espiritualmente cegos, ainda que funcionalmente ativos.
Neste texto, vamos refletir sobre como a glória própria pode contaminar o ministério, como Cristo nos deu um modelo radicalmente diferente, e por que somente a graça redentora pode nos restaurar quando tomamos o trono que só pertence a Deus.
O culto mais perigoso: o culto ao próprio eu
Tripp não poupa palavras: “O ministério pastoral sempre é moldado pela adoração. O seu ministério será moldado pela adoração a Deus, adoração a si mesmo ou, para a maioria de nós, uma mistura perturbadora de ambas.” Esse diagnóstico expõe o que está em jogo: não estamos apenas lidando com métodos ministeriais, mas com o coração do ministro.
A busca por reconhecimento, a resistência à correção, a dificuldade em delegar, o desprezo pelos dons dos outros e a autoproteção diante de qualquer crítica revelam uma alma seduzida por sua própria imagem. E o pior: tudo isso pode estar presente mesmo em quem prega o evangelho domingo após domingo.
A glória própria torna o ministério mais sobre controle do que serviço, mais sobre reputação do que arrependimento, mais sobre autoridade do que submissão. Em vez de servos lavando os pés, tornamo-nos gestores de nossa imagem, prontos para defender nossa glória e esquecer a do Cordeiro.
Cristo nos mostra outro caminho — de joelhos, com uma toalha na mão
Em João 13, encontramos Jesus fazendo o impensável: o Senhor e Mestre se levanta da mesa, amarra uma toalha na cintura e lava os pés empoeirados dos discípulos. João é claro: Jesus sabia que “o Pai tudo confiara às suas mãos”, sabia de sua origem e destino (Jo 13.3). Não foi confusão de identidade que o levou ao chão, foi precisamente o conhecimento de quem Ele era.
Paul Tripp comenta: “Esse ato atordoante de amor humilde resultou não do esquecimento de Jesus quanto a quem era, mas de se lembrar de quem Ele era.” O Filho de Deus não usou sua autoridade para exigir privilégios, mas para se entregar. Ele assumiu a posição do servo mais inferior para que a vontade do Pai fosse cumprida.
Essa cena nos desarma. Como ousamos, nós, servos imperfeitos, nos acharmos grandes demais para o trabalho humilde do ministério? Como podemos recusar a bacia e a toalha quando o próprio Cristo, Rei eterno, lavou pés empoeirados e corações orgulhosos?
Reconhecendo os frutos da glória própria: um chamado ao autodiagnóstico
O problema é que esquecemos nossa vocação. Em vez de embaixadores de Cristo (2Co 5.20), passamos a operar como “monarcas ministeriais”, orientados por posição, opinião e performance. Quando isso acontece, até mesmo o evangelho que pregamos pode se tornar um trampolim para nossa autoimagem. Isso não é apenas falha de estratégia — é pecado.
Mas há esperança. Tripp escreve com honestidade pessoal: “Deus tem me livrado de mim mesmo (uma obra que ainda continua)… Ele tem esmagado a minha coroa sob os seus pés para que eu busque ser um bom embaixador e não almeje ser um rei.”
Na parte final do capítulo, Tripp propõe uma lista prática que serve como um espelho para o coração do líder cristão (que também serve para toda a igreja´´´´). Ele nos convida a refletir: como a glória própria tem moldado nosso ministério? Os sintomas são numerosos, mas perigosamente discretos. Entre eles, destacam-se:
- Exibição pública do que deveria ser mantido em particular: uma tendência a contar histórias que exaltam a si mesmo, mesmo disfarçadas de espiritualidade.
- Discurso autorreferente: falar demais de si, de suas virtudes e orgulho, e pouco da graça que nos sustenta.
- Falar quando deveria ouvir — e silenciar quando deveria se posicionar: orgulho que sufoca o diálogo e impede a colaboração.
- Preocupação excessiva — ou quase nula — com o que os outros pensam: ora buscando aprovação, ora ignorando a sabedoria da comunidade.
- Resistência à confrontação e dificuldade em admitir falhas: o orgulho nos torna “mais retos” diante de Deus. Com isso, defensivos, inacessíveis e refratários à correção.
- Inveja das bênçãos dos outros: a glória própria alimenta ciúmes e frustrações silenciosas diante do sucesso alheio.
- Foco na posição e não na submissão: uma sede por controle que mina a beleza do serviço humilde. A ênfase na posição vai induzir à busca por privilégios, enquanto que o submisso está disposto a servir.
- Recusa em delegar: a falsa crença de que tudo precisa passar por suas mãos para ser bem-feito.
Cada um desses pontos nos desafia a fazer perguntas sérias sobre o estado do nosso coração no ministério. Estamos realmente buscando a glória de Cristo, ou desejando manter o brilho de nossa própria imagem?
Conclusão: A única glória que liberta é a de Cristo
Se há algo que deve nos mover no ministério — e na vida cristã — é a glória de Cristo. Só ela é digna. Só ela sustenta. Só ela salva. Quando nossa alma se curva diante da cruz, reconhecemos que não estamos no centro da missão. Somos apenas instrumentos — preciosos, sim, mas frágeis e dependentes da graça.
Pastor, líder, cristão: onde você tem buscado sua glória? Onde você se tornou mais um gestor da própria imagem do que um servo com a toalha de Cristo? Onde você tem resistido à confrontação, à ajuda, à comunhão?
Lave os pés. Confesse. Arrependa-se. Sirva. E lembre-se: “Bem-aventurados sois se as praticardes” (Jo 13.17).
Essa é a boa nova: há graça para pastores orgulhosos, líderes inseguros e servos cansados. E essa graça não apenas perdoa, mas nos transforma — da glória própria à glória de Cristo.
Bibliografia e Leitura Recomendada.
TRIPP, Paul David. Vocação Perigosa: um alerta para os que estão no ministério pastoral. São José dos Campos: Editora Fiel, 2013.
Bíblia Sagrada. Nova Almeida Atualizada. Sociedade Bíblica do Brasil, 2017.
Lutero, Martinho. Coletânea de Escritos – Série Clássicos da Reforma. São Paulo: Vida Nova, 2017.